A mulher através dos tempos

01/03/2013 01:00

A mulher através dos tempos

* Cândida Martins Martinez

Quanto mais o tempo passa, mais difícil se torna entender como, em pleno século XXI, com a ciência avançando e conseguindo desvendar o genoma humano, o mundo virtual se impondo nas mais diversas esferas sociais mas... As mulheres continuando sofrendo discriminações sócio-econômicas, políticas e religiosas. Como entender e aceitar, por exemplo, que na Índia, a cada 15 minutos uma mulher é estuprada; isso sem falar das que são mortas por seus companheiros, não importando se o país for do Terceiro ou Primeiro Mundo; as meninas sendo as maiores vítimas dos pedófilos, as que tem sua individualidade escondida por burkas (símbolo inegável da opressão sobre a mulher) e tantas outras atrocidades, como por exemplo na África, a mutilação dos seus genitais? Por que a desigualdade entre mulheres e homens ainda se mantém e tem sido reafirmada por leis, tradições, normas sociais e pelos mais importantes aparelhos de Estado (família, escola, religião, meios de comunicação etc).

 

Muito já se escreveu, muito já se falou sobre este tema, mas alguns aspectos fundamentais não são apontados pelas várias disciplinas existentes no universo das letras. A dificuldade existe porque corre-se o risco de que a abordagem seja considerada parcial, ou seja, defendendo um lado ou outro. Na realidade quando falamos da compreensão de fatos, temos que recorrer à ciência, por isso vamos, com ela, fazer uma rápida viagem através dos tempos para juntarmos as peças do quebra-cabeça que resultou do amalgama formado pelas várias disciplinas que abordaram este tema (antropologia, sociologia, teologia, filosofia, arqueologia, direito, psicologia)

 

Pré-história

A origem da família foi o resultado do agrupamento dos primeiro seres humanos, na África, que, em busca de sobrevivência e conveniências, foram formando sub-grupos. Não podemos esquecer que somos animais e que, naquela época, pouco nos diferenciávamos dos outros mamíferos. Com relação à procriação, éramos diferentes, os acasalamentos não ocorriam no cio, mas quando bem quisessem. Não é necessário muito esforço para deduzir com que freqüência as mulheres engravidavam. Havia um cuidado especial para com a mulher, enquanto geradora de filhos. Porém os escritos antropológicos afirmam que os homens eram responsáveis pela caça e pela pesca porque eram mais fortes. Um momento... Mas se a gravidez era o estado “normal” das mulheres, como poderiam correr atrás da caça, subir em árvores, mergulhar nos rios em busca de alimentos. Podemos então deduzir que, se fossem os homens que parissem, as mulheres é que teriam a força física tão decantada pelos “machos” (até hoje!). Muitos estudiosos da família diziam que nesta era havia promiscuidade sexual, “esquecendo-se” que nessa época não existia a noção de família, era um estado primitivo, as relações sexuais aconteciam sem limites proibitivos.

 

Não podemos esquecer que, além de parir, as mulheres preparavam os alimentos, cuidavam das crianças e dos velhos, carregavam água, cuidavam dos animais, faziam a limpeza do entorno e tinham que satisfazer sexualmente os companheiros. Vemos então que as atividades das mulheres foram fundamentais para a formação, manutenção e desenvolvimento da humanidade.

 

Idade Antiga

Dando um salto na história, vamos aportar na Grécia, berço da democracia. Não tão diferente de hoje, era uma democracia para poucos, no caso, os homens. As mulheres eram consideradas “coisas”, junto com escravos e prisioneiros de guerra. É nesse cenário que vamos

encontrar o famoso filósofo grego Aristóteles, aluno de Platão e professor de Alexandre, o Grande. Seus escritos abrangiam diversos assuntos, como a física, a metafísica, as leis da poesia e do drama, a música, a lógica, a retórica, o governo, a ética, a biologia e a zoologia. Juntamente com Platão e Sócrates (professor de Platão), Aristóteles é visto como um dos fundadores da filosofia ocidental. Contudo, foi um dos primeiros a justificar “cientificamente” a autoridade marital e paterna. “É legítima a autoridade, pois foi a Natureza que criou indivíduos aptos para mandar e outros para obedecer. As mulheres, escravos e crianças são seres incompletos, por essência, e inferior ao homem, representam um princípio negativo. A mulher, na reprodução, tem uma função secundária, pois é apenas um simples receptáculo.”(!!!). Para ele, a virtude da mulher é o silêncio, com esta “simples” afirmação, na realidade, nega-lhe a voz, a criação do próprio discurso e, portanto, a identidade. É... ninguém é perfeito!

 

Platão, como Aristóteles, achava que a mulher não era algo desejável. Apenas na sua obra,“A República”, dá indícios da importância dos direitos da mulher à educação completa, pois nesta obra fala de sociedade perfeita, de igualdade. Ocorre nesta Era da história “...O desmoronamento do direito materno, a grande derrota histórica do sexo feminino... O homem apoderou-se também da direção da casa; a mulher viu-se degradada, convertida em servidora, escrava da luxúria do homem, um simples instrumento de reprodução. Essa baixa condição da mulher, manifestada sobretudo entre os gregos dos tempos heróicos e, ainda mais, entre os dos tempos clássicos, tem sido gradualmente retocada, dissimulada e, em certos lugares até revestida de formas de maior suavidade, mas de maneira alguma suprimida.” (Friedrich Engels).

 

Idade Média (ou Idade das Trevas)

Chegamos à Idade Média. Nesta Era do caminhar da humanidade, as características familiares se acham determinadas por suas relações com a terra. Quem a possuísse tinha liberdade e poder. Surge o direito do primogênito. As mulheres não tinham poder, porque eram incapazes de defender o patrimônio familiar. Num discurso de Marco Pócio Catão (político romano) ele demonstra com clareza a relação de poder existente entre o sexo feminino e masculino quando diz: “Os senhores sabem como são as mulheres, façam-nas suas iguais imediatamente, elas quererão subir às suas costas para governá-los.”

 

Não é difícil entender que, com a criação da lei Pater-família, o homem era o único dono do patrimônio familiar e dispunha da vida ou morte ao que estavam submetidos à sua autoridade. Com o surgimento do Cristianismo, a mulher não era mais escrava e sim companheira (obviamente nas classes dominantes). Mas vamos destacar um trecho da Epístola de São Paulo...”O homem tem que ser o chefe porque foi o primeiro a ser criado. O homem deve amar a esposa como Cristo amou sua Igreja e a mulher deve comportar-se como a Igreja com respeito a Cristo. As casadas estão sujeitas aos seus maridos como ao Senhor”. Citando agora a “Gêneses”, ...”Deus criou a mulher com uma costela do homem, assim sendo, a mulher significa perda para o homem, é também responsável pelo pecado. Por isso, a mulher sofrerá maldições e parirá com dor; a paixão a levará ao esposo que a dominará”. Agora as palavras de Santo Agostinho, uma das figuras mais importantes no desenvolvimento do Cristianismo: ”As mulheres não devem ser iluminadas ou educadas de modo algum. Devem ser, na realidade, segregadas, pois são elas a causa das horrendas e involuntárias ereções dos homens santos.”

 

Mas vamos ver agora o que dizia um personagem que rompeu com a Igreja Católica, Martinho Lutero: “Ao homem compete o governo, a mulher deve curvar-se. O homem é mais elevado e a mulher é uma criatura partida, uma besta hidrófoba. O mérito maior que possui é o de gerar.”

 

Caras leitoras e leitores, temos necessidade agora de um tempo para respirar... Só de mencionar a carga que foi colocada sobre os ombros das mulheres, ir adiante está sendo se tornando pesado demais!! Bem, vamos continuar...Talvez a situação melhore.

 

Idade Moderna

Estamos agora diante de acontecimentos muito importantes: A revolução Francesa e a Revolução Industrial. Este fenômeno promove grandes mudanças na organização familiar. O trabalho é transladado para o mundo público, mas as tarefas domésticas ficam no mundo

privado, ao encargo das mulheres. Contudo, a nova organização mantém a mesma hierarquia familiar anterior, já que é o homem que sai da casa para trabalhar e é o único responsável pelo sustento da família. Com o surgimento do Capitalismo, tem valor o trabalho que é remunerado. O trabalho doméstico é assalariado e, portanto, “não tem valor” (idéia que se mantém até hoje!). Isto se configura como o prolongamento da ideologia da inferioridade da mulher. Alguns personagens, que possuíam voz naquele período, fizeram algumas afirmações:

 •Jean-Jacques Rousseau( filósofo) : “A função da mulher é a de mãe, esposa, cuidar da casa e educação dos filhos.”

 •Charles de Montesquieu (político e filósofo) ”A desigualdade entre o homem e a mulher é uma injustiça, já que a idéia de inferioridade não reside na natureza e sim na falta de educação e pouca cultura.”

 •François Marie Arouet (mais conhecido como Voltaire) filósofo iluminista: “A educação sólida levaria as mulheres a serem boas mães e esposa, pois o matrimônio se realiza por amor e inteligência. O homem encontra na mulher um complemento de sua imagem”.

 

Podemos deduzir, sem muito esforço, que o discurso mudou, mas a hierarquia familiar e o papel da mulher continuaram os mesmos. Voltando a Engels... “A emancipação da mulher só se tornará possível quando ela puder participar, em grande escala social de produção e o trabalho doméstico lhe tomar um tempo insignificante.” Ledo engano!!! Hoje a mulher participa da produção e é também responsável por todo trabalho doméstico, arcando assim com duas jornadas diárias de trabalho.

 

Idade Contemporânea

É a época atual. Teve início com o amadurecimento das idéias iluministas disseminadas pela Revolução Francesa, que contribuíram com o progresso científico na busca de novos conhecimentos para entender a sociedade e o homem (notem que os diversos estudos sobre

a humanidade se referem ao ser humano como o Homem...Onde foram parar as mulheres?!) Este período é marcado por acontecimentos que foram responsáveis pelas maiores catástrofes já registradas na História, como a Primeira e Segunda Guerras Mundiais, a criação da

bomba atômica, a Guerra Fria, as guerras de Independência de várias nações, etc. Também foi o período em que foram buscadas novas alternativas para a convivência social, como o sistema comunista teorizado pelo pai da sociologia, Karl Marx. Sistema este que, diferentemente do Capitalismo, coloca como valor maior o ser humano e não o capital. A constituição soviética estabeleceu que as mulheres desfrutariam de “direitos iguais aos homens em todos os terrenos da vida econômica, pública, cultural, social e política”. O código penal, por sua vez, determinou punições para os que buscassem impedir que isto se realizasse.

 

Por volta dos anos 60, “A sociedade conservadora primava pelos chamados “bons costumes”. As mulheres eram as principais vítimas, pois estavam presas, através das restritas possibilidades de trabalho externo à sua família, “acorrentadas” econômica e sexualmente,

sem escolhas democráticas para casarem-se, divorciarem-se ou ficarem solteiras e tendo liberdade sexual.” (Dermeval Corrêa de Andrade). Nessa época começou a ter importância estudos que girassem em torno das origens e causas da posição subordinada das mulheres e o porquê dessa situação perpetuar-se ao longo da história. Se caracterizava como um movimento social, filosófico e político tendo como meta direitos iguais e uma vivência humana liberta de padrões opressores baseados em normas de gênero. A maior parte dos movimentos e teorias feministas tiveram como líderes principalmente mulheres brancas de classe média, da Europa Ocidental e da América do Norte. O feminismo acaba sendo mais voltado para as mulheres brancas de classe média-alta. Nos segmentos mais oprimidos de desigualdades econômicas, étnicas e sexuais, em qualquer parte do mundo, cresce número de mulheres que, mesmo assumindo o papel de chefes-de-família, não tem o mesmo valor de quando o homem ainda faz parte do grupo.

 

 Mas vamos mencionar algumas estatísticas que abordam a realidade da mulher no mundo atual:

 • Quando se considera a criação dos filhos e o trabalho doméstico, as mulheres trabalham mais do que os homens, quer no mundo industrializado, quer no mundo subdesenvolvido (20% a mais no mundo industrializado, 30% no resto do mundo).

 • As mulheres detêm apenas 1% da riqueza mundial, e ganham 10% das receitas mundiais, apesar de constituirem metade da população

 •As mulheres estão sub-representadas em todos os corpos legislativos mundiais.

 •Em média, mundialmente, as mulheres ganham 30% menos do que os homens, mesmo quando têm o mesmo emprego.

 

Conclusão

O conhecido cientista Sigmund Freud afirmava: “Nunca fui capaz de responder à grande pergunta: o que uma mulher quer?” Meu caro Professor, a resposta é simples, consiste em respeitá-la nos relacionamentos familiares, afetivos e profissionais como consta na Declaração Universal dos Direitos Humanos: “ Os direito humanos são direitos inerentes a todos os seres humanos, independentemente de etnia, sexo, nacionalidade, idioma, religião ou qualquer outra condição. Os direitos humanos incluem o direto à vida e a liberdade, à liberdade de opinião e de expressão, o direto ao trabalho e à educação. Todos merecem estes diretos sem discriminação.”

 

Aí está o quebra-cabeça, cujas peças são a história das mulheres durante o caminhar da humanidade. Acredito que os componente da “cola” que liga este quadro tem muito a ver com a força da propriedade dos bens e da maioria das ideologias religiosas que, indo ao encontro dos interesses dos poderosos, tem conseguido manter essa injustiça na mente de homens e, infelizmente, também nas mulheres. “O sucesso dessas ideologias consiste em manter escondidas as causas dos fenômenos sociais, ou seja formam parte do inconsciente ideológico. A sociedade, ao invés de corrigir as distorções da realidade, através da educação social saudável, buscando que todo ser humano possa ter direitos e oportunidades iguais faz justamente o trabalho de manutenção perversa de atitudes que só depõem contra a humanidade, pois são embasadas em interpretações que iniciam e se fixam – por conveniências de alguns – nas aparências.”(Dermeval Corrêa de Andrade).

 

Caras leitoras e leitores, muito há por fazer. Não se coloquem no pólo atrasado da sociedade. Lutem por justiça, pois as vítimas estão bem próximas a vocês!

 

* Cândida Martins MartinezTerapeuta da Práxis, especializada em Educação Social Transformadora e Comunicação Social. Tradutora (Espanhol, Inglês e Italiano), autora do livro “Compreendendo o Autismo. É membro da Diretoria do Instituto Argumentos – Ciência e Cultura.

 

Nota da autora

Tendo em vista que “A ciência é uma construção coletiva e o assunto deste Caderno depende, necessariamente, da recorrência a muitos autores”, tivemos que sintetizar as teorias e, com isso, a explicitação dos nomes dos científicos acarretaria a inclusão de várias páginas para a bibliografia, sugerimos então que a(o)s leitoras(es) interessados busquem as várias fontes (livros ou recursos midiáticos) que contenham as teorias completas dos itens aqui abordados.