Comissão da Verdade de SP investiga relações entre consulado dos EUA, Fiesp e ditadura militar

25/02/2013 22:06

Comissão da Verdade de SP investiga relações

entre consulado dos EUA, Fiesp e ditadura militar

*Tatiana Merlino/Comissão da Verdade/Alesp

Eram cerca de 11 horas de 5 de abril de 1971 quando o dirigente do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), Devanir José de Carvalho, foi capturado por agentes do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), um dos centros de tortura e repressão da ditadura militar (1964-1985). Devanir foi torturado desde sua prisão até dia 7, quando, por volta das 19 horas, foi assassinado.

Pouco depois que o militante foi levado ao Dops, entravam no órgão o capitão Ênio Pimentel Silveira, conhecido por Dr. Ney (que comandava a Divisão de Investigação da Operação Bandeirantes do Centro de Informações do Exército- CIE), às 12h35, e Claris Rowney Halliwell, às 12h40, identificado como “consulado dos Estados Unidos”. Os horários de entrada de ambos constam em um dos seis livros de registro de entrada e saída do Dops, encontrados no Arquivo Público do Estado de São Paulo, e apresentados em audiência pública ocorrida na última segunda-feira, 18, e convocada pela Comissão Estadual da Verdade “Rubens Paiva”. A audiência foi a primeira de uma extensa programação da Comissão para o primeiro semestre deste ano.

Visitas noturnas

Os livros analisados pela Comissão compreendem o período entre 1971 e 1979, porém com intervalos. Nos registros de visita ao Dops constam, além dos nomes de vários delegados, investigadores e representantes do Exército, o de Halliwell. De acordo com os horários de entrada, conclui-se que a maioria de suas visitas ocorria no período da noite. Halliwell (1918-2006) foi funcionário do Departamento de Estado dos EUA e cônsul na capital paulista entre 1970 e 1974. Para se ter uma ideia, somente no período de abril a setembro de 1971, ele esteve cerca de quarenta vezes no prédio do Dops.

“Queremos saber quem é ele. O Departamento de Estado dos Estados Unidos tem de nos explicar. Ele visitava o Dops de duas a três vezes por semana em horários em que sabemos que ocorriam torturas. No mínimo, esse cidadão ouvia as torturas, e colaborou com a ditadura por omissão”, disse Ivan Seixas, coordenador da assessoria da Comissão da Verdade de São Paulo, para cerca de 250 pessoas que lotaram o auditório Paulo Kobayashi, na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp).

Ouviu torturas?

No caso do dia em que Devanir foi preso, consta apenas a entrada de Halliwell. Sua saída não está assinalada. “Ou seja, no mínimo ele ouviu as torturas de Devanir”, apontou Ivan Seixas.

De acordo com os registros, outra presença constante no órgão de tortura era a de Geraldo Resende de Mattos, identificado como representante da Fiesp (Federação das Indústrias de São Paulo). Os horários de entrada de Mattos são, também, em sua maioria, no período da noite. Não há horário de saída de ambos. Muitas vezes, não há horário de saída de Halliwell e Mattos. Há, também, alguns registros de que saíam apenas no dia seguinte. Nos livros, em algumas vezes Mattos é indicado como delegado. “E sempre entra no fim do expediente”, pontua Seixas. No dia 24 de fevereiro de 1972, por exemplo, ele entrou às 18h45 e só saiu às 6h45 da manhã seguinte. “E não dá para dizer que é uma pessoa que não tem identificação, porque num dos registros há até a placa do carro dele”, disse. “Queremos descobrir qual é a relação do consulado dos Estados Unidos e da Fiesp com a ditadura”, cobrou Seixas.

Defesa da democracia

No início da audiência, o deputado Adriano Diogo, presidente da Comissão Estadual da Verdade de São Paulo, apresentou uma nota de esclarecimento que a Fiesp mandou à imprensa: “O nome de Geraldo Rezende de Mattos não consta dos registros como membro da diretoria ou funcionário da entidade. É importante lembrar que a atuação da Fiesp tem se pautado pela defesa da democracia e do Estado de Direito, e pelo desenvolvimento do Brasil. Eventos do passado que contrariem esses princípios podem e devem ser apurados”.

A ideia que se tem de que Oban, Dops, Exército e civis disputavam entre si é desmentida pela quantidade e representatividade de visitantes do Dops que constam nos livros, apontou Seixas. “Havia uma romaria de pessoas que iam até lá. Essa romaria indica o que era o Dops, que tinha um papel de grande articulador”, explicou.

A relação entre empresários brasileiros, o consulado dos Estados Unidos e a repressão não é novidade e já foi tratada em teses acadêmicas e em trabalhos documentais, como em Cidadão Boilesen (2009), filme de Chaim Litewski, que teve um trecho exibido no início da audiência. Nele, o cineasta narra a vida do empresário dinamarquês Henning Boilesen, então presidente do grupo Ultra, e seu apoio e participação junto aos órgãos de repressão da ditadura.

“Sempre houve ligação do empresariado com a repressão política”, pontuou Ivan Seixas. “Nas fábricas, por exemplo, havia listas negras [de funcionários que lutavam contra a ditadura].”

Perseguições e violência

Durante a audiência, representantes do movimento sindical também apresentaram denúncias de perseguições, demissões e violências ocorridas dentro das fábricas. As denúncias foram feitas por Delmar Mattes, Waldemar Rossi, Américo Gomes, o deputado Zico Prado, o ferroviário Rafael Martinelli, o ex-metalúrgico Salvador Pires, o ex-diretor do Sindicato dos Químicos Domingos Galante e Sebastião Neto, da Oposição Sindical Metalúrgica (OSM).

O Projeto Memória da OSM-SP organizou uma cartilha que contém documentos que demonstram a relação das empresas com a repressão aos movimentos sindicais operários e que propõe “investigar a relação entre as empresas e a repressão a partir dos documentos já encontrados e dos testemunhos já conhecidos; convocar para esclarecimento os organizadores já identificados do financiamento empresarial aos órgãos de repressão, como Delfim Netto e os empresários citados”.

A pesquisa, entregue à Comissão da Verdade, apresenta uma lista de empresas que tinham relações com a repressão política, como a Cobrasma, de Osasco – que “em 1965 apresenta seu chefe de vigilância ao Dops e pede os antecedentes de funcionários” –, a Tecnoforjas-Zona Leste de SP, que enviou ao Dops a ficha de registro dos empregados grevistas de 1979 e colocou funcionários numa “lista negra” – e a Monark-Zona Sul de SP, que enviou ao Dops, como aponta a pesquisa, “mais de 200 fichas de registro dos empregados grevistas em 1982”.

O documento também aponta a “lista negra” do ABC, empresas da região “que informavam ao Dops o endereço residencial, a seção em que trabalhavam e em alguns casos o cargo que ocupavam os trabalhadores suspeitos de atividade ‘subversiva’”.

Homenagem

No início da primeira audiência do semestre, o presidente da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva” pediu um minuto de silêncio para Carlos Alexandre Azevedo, que se suicidou na madrugada do dia 17, com uma overdose de medicamentos. Carlos Alexandre Azevedo foi preso juntamente com seus pais quando tinha apenas 1 ano e 8 meses de idade, no dia 14 de janeiro de 1974. Levado ao Dops, foi submetido a violências físicas e psicológicas, que o marcaram para sempre. Azevedo sofria de depressão e fobia social.

*Tatiana Merlino, jornalista da assessoria da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”