Aline Scolfaro: "A Expedição Anaconda e a valorização da cultura indígena"

11/04/2013 20:21

Aline Scolfaro: "A Expedição Anaconda

e a valorização da cultura indígena"

Luana Costa/Acesso
 

 

“Não se pode negar que o conhecimento sobre o meio em que se vive é algo fundamental para a construção da cultura de um povo”. É o que explica o advogado Fernando Mathias, do Programa de Política e Direito Socioambiental, em artigo publicado no livro  Povos Indígenas no Brasil ( download aqui) . Para ele, no Brasil,  o conhecimento sobre o meio está intimamente ligado aos povos indígenas.

Pensando em valorizar e dar visibilidade à cultura indígena proveniente da região amazônica, o Instituto Socioambiental – ISA organizou um grupo de pesquisadores, que percorreu o curso do Rio Negro, entre Manaus (AM) e São Gabriel da Cachoeira (AM), e refez parte da rota por onde chegaram diferentes povos que até hoje habitam o local. A chamada Expedição Anaconda aconteceu entre 18 de fevereiro e 3 de março, com a participação de 18 indígenas das etnias Tukano, Tuyuca, Pira-Tapuia, Bará, Desana, Tariano e Makuna.

O projeto foi realizado em parceria com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan ,e a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – Foirn, além dos ministérios da Cultura, do Brasil e da Colômbia. A organizadora da expedição e antropóloga, Aline Scolfaro, conta os detalhes da viagem na entrevista abaixo. Boa leitura!

 

Quando partiram para a Expedição Anaconda, vocês já imaginavam o que encontrariam?

Aline ScolfaroComo se tratava de uma experiência inédita, não sabíamos exatamente o que poderíamos encontrar e o que iria acontecer no percurso. Todos os dias fazíamos um planejamento com os conhecedores indígenas para organizar as paradas, baseando-nos nas referências contidas em suas narrativas de origem e em mapas do trajeto. Os próprios conhecedores também não sabiam de antemão a localização exata dos lugares referidos nas histórias aprendidas de seus antepassados, já que muitos deles nunca tinham andado por ali. A maioria só conhecia em pensamento, das viagens espirituais que fazem quando precisam “benzer” a alma de uma criança recém-nascida ou a alma de um doente. Assim, foi necessário um planejamento diário e um diálogo constante entre os conhecedores indígenas, os pesquisadores brancos e o piloto da embarcação.

 

Quantos lugares foram visitados?

Aline ScolfaroForam visitados 23 lugares, por onde os primeiros ancestrais dos grupos indígenas participantes da expedição teriam passado.

 

E o que a expedição encontrou?

Aline Scolfaro O que encontramos no percurso revelou muito, não apenas da paisagem e da geografia do Rio Negro, mas também de sua história. Nos deparamos com pedras e formações rochosas inusitadas e também com  gravuras rupestres que, para os conhecedores indígenas, constituem as marcas dos eventos ocorridos no tempo da origem do mundo e de seus primeiros ancestrais. Visitamos lugares riquíssimos em fragmentos cerâmicos e peças arqueológicas, que testemunham uma história e uma cultura indígena milenar no rio. Também nos deparamos com diversas comunidades, habitadas por indígenas da etnia Baré  – tradicionais moradores do médio Rio Negro – e por caboclos e descendentes de portugueses, que guardam a memória de uma história mais recente relacionada à ocupação destes locais e à expansão colonial. Pudemos ver em diversos locais as marcas da urbanização e dessa história mais recente sobrepostas às marcas da ancestralidade.

 

Quais foram os objetivos da expedição?

Aline Scolfaro O principal objetivo da expedição foi refazer parte da rota mítica que teria levado os primeiros ancestrais dos povos Tukano aos locais onde até hoje habitam os diversos grupos indígenas deste tronco linguístico. Outro objetivo foi colaborar para dar visibilidade à região do Rio Negro e a seus moradores, chamando atenção para o rico conjunto de conhecimentos que os povos indígenas possuem a respeito do seu território e para a qualidade das relações que eles estabelecem com estas paisagens.

 

O que será produzido com o material recolhido?

Aline Scolfaro A partir dos registros pretendemos produzir um vídeo-documentário e um acervo audiovisual, que possa circular entre as comunidades do Rio Negro e nas escolas indígenas da região, além de chegar também ao público em geral. Acredito que as políticas públicas pensadas para a região devem levar em conta esses conhecimentos e práticas, acumulados durante gerações. Além de tudo, a população do município de São Gabriel da Cachoeira é formada, de acordo com dados do último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, por 80% de indígenas. O município de Barcelos, no médio Rio Negro, também tem cerca de 60% de sua população formada por indígenas.

 

Existe alguma previsão de continuidade para o projeto?

Aline Scolfaro A viagem faz parte de um projeto mais amplo e de um conjunto de ações que vêm sendo apoiadas por diversas instituições. A ideia começou a ser gestada em ambos os lados da fronteira, Brasil e Colômbia, graças a projetos desenvolvidos há mais de duas décadas pelo ISA, no Brasil, e pelas fundações Gaia e Etnollano, na Colômbia, junto aos povos do noroeste amazônico. Mais recentemente, essas experiências têm levado à concepção e articulação de um programa binacional de cartografia cultural, chamado Projeto Mapeo, cujo objetivo é mapear e documentar o sistema de lugares sagrados dos povos das famílias linguísticas Tukano Oriental, Arawak e Maku, que habitam essa região da Amazônia.

 

Na sua visão, os lugares percorridos são, ainda hoje, considerados sagrados pelos que vivem lá?

Aline Scolfaro Estes lugares são sagrados na medida que se relacionam com eventos ocorridos no tempo da origem do mundo e dos seres humanos e que guardam, ainda, poderes criativos que os conhecedores e xamãs manejam em suas práticas de cura e proteção. Por isso, eles estão envoltos em uma série de regras e restrições de comportamento que é preciso respeitar, caso se deseje manter a boa saúde das pessoas e das comunidades. Essa percepção ainda existe, mesmo entre a população do médio Rio Negro, com uma história de contato bem mais antiga e complexa, mas que compartilha com os grupos do alto Rio Negro certos saberes e elementos da cultura indígena local. Então, por todo o rio há uma rede intercultural que envolve relações de troca de toda ordem, inclusive intercâmbios de narrativas, histórias, concepções de mundo, éticas e práticas sociais, rituais e ecológicas.

 

Por que há a necessidade do resgate?

Aline Scolfaro Essa é também uma região fortemente marcada pelas transformações decorrentes da história do contato com a população branca e da ocupação colonial. Assim, parte destes conhecimentos e desta ética tradicional em relação aos lugares e à paisagem foram também transformados e, de alguma maneira, obscurecidos por outros tipos de interesses e outras formas de saberes herdados do mundo ocidental. Por isso, há a necessidade de revalorizar e dar nova visibilidade a esses conhecimentos. E esta revalorização cultural está ligada intimamente com a necessidade de preservação desses lugares, sendo que as próprias políticas ambientais locais deveriam levar em conta esta ética tradicional e a qualidade da relação que os povos indígenas estabelecem com estas paisagens.

 

Na sua opinião, a parceria travada entre os ministérios da Cultura, do Brasil e da Colômbia, em prol de uma ação como esta representa uma tentativa de integração cultural da América Latina?

Aline Scolfaro Os ministérios da Cultura dos dois países estão trabalhando juntos no sentido de construir uma política de salvaguarda no noroeste amazônico, que opere a partir da própria lógica nativa de território, rompendo fronteiras nacionais e reconhecendo usos, ocupações e concepções dinâmicas do espaço. Os chamados lugares sagrados não são pontos estáticos e isolados na paisagem, mas são nós numa extensa rede social e cosmológica, que integra os grupos, o território, o passado e o presente. Assim, antes de ser uma integração latinoamericana, no sentido da geopolítica ocidental, a questão que se coloca é de levar a sério as concepções territoriais e sociocosmológicas de povos que, há milhares de anos, ocupam e manejam este território que chamamos Brasil, Colômbia, Venezuela, Bolívia, etc.