E se eu fosse evangelicofóbica?

15/06/2011 22:56

 E se eu fosse evangelicofóbica?

Geralmente falamos da luta contra o preconceito e contra a intolerância religiosa e diversidade cultural. Colocamos este artigo, justamente porque num país laico, nenhuma religião deveria querer se impor às outras. No entanto, algumas denominações que compôem apenas 5% da população têm tidos atitudes de intolerância, num país em que são minoria, mas que galgam espaços na mídia e no poder econômico e político.Por isso, vale esse questionamento.
De novo esse assunto. De novo muita vontade de brigar aqui no meu coração. Essa noite eu tive um sonho que teria sido cômico, não fosse trágico: eu brigava com um pastor evangélico, sobre o PLC122 (que criminaliza o preconceito com gênero e sexualidade da mesma forma que o racismo já é criminalizado aqui no Brasil). Ele começava a me bater e eu, com a ajuda da minha mãe e do meu marido, espancava o infeliz. Espancava mesmo. Sonhar com um negócio desses em si já é trágico. Mas fica pior, porque eu me sentia completamente realizada e feliz ao fazê-lo e, ao acordar, senti ainda que alguma coisa aqui dentro que estava incomodando tinha sido aliviada. Ontem pastores levaram ao senado um abaixo-assinado com um milhão de assinaturas. De fiéis, claro: "assinem aqui e vá pro paraíso"-style. Então, meio aliviada, meio feliz, meio triste, meio assustada com esse ímpeto violento que de vez em quando aparece (só nos sonhos, ainda bem), me coloco a seguinte questão: e se eu fosse evangelicofóbica? E se a discussão fosse um projeto de lei pra permitir o preconceito e a discriminação com evangélicos (que pela nossa constituição já é proibida há tempos)?

*(e vamos combinar que um milhão de assinaturas pra quem tem a palavra de Deus e a doutrina de seu lado nas proporções da figurinha aí em cima é bem pouco né?)

Caro pastor,

sou atéia desde criancinha. Já me aproximei de várias religiões e optei por continuar sendo atéia. Foi uma decisão muito pessoal. Tenho amigos que foram criados como ateus e também por opção se tornaram evangélicos, outro budistas, outros até católicos. Acho que é normal pra todo mundo em algum momento da vida buscar respostas em religiões. Alguns encontram, outros preferem ficar buscando respostas pra sempre, fora da religião. Mas é uma decisão muito pessoal e do mesmo jeito que eu respeito meus amigos que têm religião, eles me respeitam por não ter religião.

Felizmente vivemos num país em que a liberdade religiosa e de culto é assegurada por lei. Sem esta liberdade não é possível haver democracia. Além da liberdade religiosa, nossa lei também proíbe e criminaliza a discriminação em função da religião. O senhor já imaginou se fôssemos proibidos de ter nossos templos, nossos salões, nossas igrejas, nossos terreiros? Se só uma religião fosse permitida? Se lembrarmos da história do cristianismo, inclusive veremos que os evangélicos e outros protestantes foram perseguidos, assassinados, injustiçados e tiveram que viver escondidos em função de sua religião. Eu gostaria muito de concluir este texto dizendo que nossa sociedade hoje evoluiu, já que isso não acontece mais. Mas não posso.

Talvez para o senhor a sexualidade (gostar de homens ou de mulheres) tenha sido uma opção. Eu sou casada, meu marido segue uma religião cristã que também já foi e ainda é muito discriminada (Espiritismo) e sei que não teve nenhum momento na minha vida em que eu escolhi, optei ou decidi ser heterossexual. Quando era adolescente e comecei a me interessar por pessoas do sexo masculino foi que eu descobri que era. Mas não foi uma escolha, uma opção. Foi uma descoberta. Com a religião foi diferente. Eu conheci várias religiões, li sobre elas, frequentei diferentes cultos e fui, devagar, percebendo que a minha forma de me comunicar com o que chamamos de Deus não era a que essas religiões (inclusive a evangélica que eu frequentei com minha falecida avó) propunham. Mas eu entendi que para muitas pessoas no mundo a religião é a melhor forma de se comunicar com Deus, de se salvar. Por isso as religiões têm que ser permitidas, mesmo que eu pessoalmente prefira não seguir nenhuma delas. O fato é que teve um momento, depois de conhecer várias religiões, que eu decidi ser atéia, decidi parar de procurar respostas nas religiões que existem (e olha que foi uma busca muito longa). Com a minha sexualidade não foi assim.

Curiosa, conversei com amigos que não têm a mesma sexualidade que eu (assim como tinha conversado muito com amigos que não têm a mesma religião ou interpretação espiritual que eu). Queria saber se eles tinham escolhido um dia se iam gostar de homens ou de mulheres, porque eu mesma só tinha descoberto isso. E sabe que o que eles viveram foi bem parecido com o que eu vivi? Me surpreendi, pois achava que era muito diferente gostar de alguém do mesmo sexo ou do sexo oposto. Mas assim como eu eles só descobriram, um dia, que eram assim. Como eu descobri que era hétero, eles e elas descobriram que não eram. Eram gays.

Foi com alguns destes amigos que eu comecei a perceber que nem todo mundo que convivia com eles achava que eles eram iguais. Pastor, o senhor já imaginou não ter a bênção de seus pais para o casamento só porque você é evangélico e seus pais, por exemplo, budistas? O senhor já imaginou não poder comer carne vermelha porque as leis do país são budistas e, no budismo, a carne vermelha é impura? Já imaginou apanhar na rua de desconhecidos por estar de mãos dadas com a sua mulher? Seria uma vida muito dura. Pois eu descobri que a vida de muitos homossexuais é assim, hoje. Mas é pior ainda que no caso da religião, pois ninguém escolhe a própria sexualidade... Eu não escolhi ser heterossexual, e o senhor? Teve algum momento em sua vida que você parou pra tomar essa decisão depois de ter avaliado todas as opções disponíveis e experimentado cada uma delas? Nem eu. E nem os gays e lésbicas.

Me diga, pastor, se alguém merece sofrer a exclusão, a violência, a vergonha que muitas vezes lhe é ensinada, somente por ser como Deus o fez. Por que? Ninguém merece sofrer porque nasceu negro. Ninguém merece sofrer porque nasceu homem. Ninguém merece sofrer porque nasceu mulher. Ninguém merece sofrar porque escolheu ser evangélico, ou budista, ou católico. Por que é então que alguém merece o sofrimento de não poder se casar, de não poder ter sua família, de não poder caminhar de mãos dadas ou se beijar na rua sob o risco de ser espancado, só porque nasceu gay? Eu entendo que a interpretação evangélica da bíblia e do mundo é contra isso. Mas ninguém que defende o PLC122 pretende forçar nenhum envagélico a ser gay ou defender os gays. Só pedimos que os evangélicos respeitem a diferença entre aqueles que concordam com eles e aqueles que não concordam. Entre gays e heteros. Entre homens e mulheres. Entre negros e brancos. Porque é só respeitando a diferença e abrindo espaço para a diversidade que podemos ter liberdade. Que podemos ter democracia. Já imaginou, de novo, se a maioria não-evangélica do Brasil fosse contra os evangélicos terem o direito de se casar, de exercer seu culto? Não seria justo, não seria democrático. Pois aqui é a mesma coisa.

É com o reconhecimento da diferença que podemos construir um mundo sem desigualdade. Que tal, pastor? Vamos construir um mundo onde, como Jesus queria, todos são tratados como seres humanos apesar de sua religião, profissão, sexo, gênero, sexualidade, cor?