Haitianos no Acre: Crise humanitária se instala na fronteira com a Bolívia

21/12/2011 16:15

 

Haitianos no Acre: Crise humanitária se instala na fronteira com a Bolívia

Geodireito.com/Blog da Amazonia/altino Machado

 



Unflor completou dois anos de idade na semana passada, ganhou uma festa com bolo e presentes, mas ninguém sabe onde e em que condições ela vai viver seus próximos dias.

Unflor é uma das quinze crianças que vivem ao redor da praça central de Brasiléia (AC), na fronteira do Brasil com a Bolívia, entre os mais de 700 refugiados haitianos.

Unflor é uma das protagonistas de um drama que tem tudo para se transformar rapidamente em uma crise humanitária internacional.

Unflor na verdade pode ser chamada de Enfleur ou Emflor, de acordo com o sotaque do interlocutor.

Conforme observa Damião Borges, funcionário da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do governo do Acre e principal responsável pela rede de apoio que se criou por iniciativa de moradores de Brasiléia, os haitianos são pessoas adaptáveis, extremamente resistentes, curiosas e dedicadas ao trabalho, mas têm alguma dificuldade com a disciplina.

As condições de vida do grupo melhoraram depois que foram transferidos de uma alojamento provisório no ginásio de esportes do município de Epitaciolândia (AC) para o Hotel Brasiléia e algumas casas ao redor da praça, mas a chegada constante de novos refugiados ameaça levar a cidade ao colapso. Ainda assim, dormem apertados em um espaço previsto para não mais do que 200 hóspedes.

No começo, há pouco mais de um ano, era um pequeno grupo de trabalhadores, entre eles alguns bastante qualificados, como Leonel Joseph, que aos 34 anos fala fluentemente cinco idiomas e conseguiu colocação como professor de espanhol e inglês em Rio Branco.

Ele atua como intérprete do grupo e viaja constantemente a Brasiléia para conduzir um curso de português para os que chegaram depois. As primeiras colocações estimularam parentes e amigos a também enfrentar a longa e penosa viagem do Haiti, via República Dominicana, Panamá, Equador, Peru e Bolívia.

A maioria deixou suas famílias endividadas com o financiamento da viagem, na esperança de procurar trabalho e renda no caminho, mas foi apenas no Brasil que encontraram alguma solidariedade.

Os haitianos relatam que foram seguidamente maltratados e extorquidos por policiais e autoridades aduaneiras em sua travessia pela Bolívia.

Segundo um dos porta-vozes do grupo, Wilson Bastien, pintor que tem conseguido trabalho para si e para alguns ajudantes, houve tentativas de estupro e praticamente todas as mulheres têm sido molestadas e submetidas a constrangimento nos postos policiais da Bolívia, com maior frequência na localidade chamada Soberania, junto à fronteira com o Peru.

Os haitianos evitam atravessar a ponte sobre o Rio Acre, que liga Brasiléia a Cobija, capital do departamento boliviano de Pando.

Eles avisam os que estão a caminho para que escondam o dinheiro e objetos de valor. Os policiais bolivianos chegam a se apossar do dinheiro e das melhores roupas e sapatos que os haitianos carregam basicamente como bagagem.

A presença de mulheres e crianças muito pequenas agrava o quadro. Apenas a solidariedade dos moradores de Brasiléia tem evitado uma tragédia.

Hospedagem e alimentação têm sido asseguradas pelo governo do Acre, mas o Itamaraty ainda não tomou medidas efetivas para organizar a recepção e um esquema de proteção.

Os líderes da comunidade haitiana que se formou no Acre dizem que eles querem apenas a oportunidade de trabalhar, para enviar dinheiro a suas famílias, uma vez que as condições de vida no Haiti apenas pioraram desde o terremoto de janeiro de 2010.

A ajuda humanitária organizada pela ONU é desviada pela elite política e militar, as prometidas obras de reconstrução não começaram até agora e o país continua tão desorganizado como nos primeiros meses após a tragédia.

Enquanto isso, eles passam o tempo conversando na praça, jogando intermináveis partidas de futebol ou estudando. É o caso de Mathurin Thilidou, que estuda simultaneamente português, francês, espanhol, italiano e alemão num conjunto de apostilas surradas que leva consigo para todo lado.

Os poucos que ainda possuem algum dinheiro se comunicam com suas famílias pelo celular, e a maioria utiliza e-mail, na lan house de Alexandre Lima, criador do site noticioso www.oaltoacre.com.br, um dos apoiadores do grupo.

No sábado (10), quando os capoeiristas da escola Cordão de Ouro se apresentavam na praça, chegavam mais 61 haitianos e no domingo (11), com um novo contingente, o número de refugiados subiu para 724, entre os quais quase 20 crianças como Unflor.

Vitória, a mais nova, nasceu em Brasiléia na semana passada e outras quinze mulheres esperam bebês para as próximas semanas e meses.

Algumas estão sendo atendidas com alimentação e cuidados apropriados na creche local, mas a capacidade de acolhimento da cidade está próxima do esgotamento.

A chamada grande imprensa compareceu a Epitaciolândia nos primeiros dias em que os primeiros grupos foram alojados no ginásio de esportes, mas a curiosidade jornalística foi se esvaindo conforme a situação se agravava.

A possibilidade de um colapso, com a eclosão de uma crise humanitária de graves proporções, aumenta a cada dia.

Uma ação da Organização dos Estados Americanos, sempre bem relacionada com a Sociedade Interamericana de Imprensa, poderia inibir o tratamento criminoso que os migrantes recebem de autoridades corruptas na Bolívia.

Uma reportagem numa revista de circulação nacional poderia sensibilizar os organismos multilaterais para aliviar o sofrimento dos refugiados.

Enfim, uma ponte humanitária poderia fazer o encontro entre essa oferta de mão de obra e a demanda de construtoras em algumas cidades brasileiras.

Tudo que os haitianos querem é uma oportunidade de trabalho.

Na pequena cidade peruana de Ibéria, o padre René Salizar organiza uma reunião de ativistas de direitos humanos da Região MAP - de Madre de Dios (Peru), Acre (Brasil) e Pando (Bolívia).

A pauta: ações proativas possíveis em relação à diáspora haitiana, ações imediatas em relação às violações dos direitos humanos dos haitianos na sua migração via Região MAP e tentar estabelecer uma rede de comunicação rápida para agilizar ações humanitárias.

Brasília ignora situação

Faz duas semanas que o governador do Acre, Tião Viana (PT), se reuniu com o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, para anunciar que a ajuda estadual aos refugiados haitianos  será encerrada no dia 30 de dezembro. O ministro prometeu articular uma reunião interministerial, mas até agora nada aconteceu a partir de Brasília.

- Como o Acre não tem condição de custear sozinho as despesas da ajuda humanitária aos refugiados haitianos, o governador Tião Viana reafirmou hoje (domingo) a disposição de suspender a assistência no final deste mês - disse o senador Anibal Diniz (PT-AC).

Desde o começo do ano, o governo do Acre implora apoio do governo federal para atender aos haitianos. O ministério da Justiça sequer cumpriu a promessa de enviar uma comitiva ao Acre para tomar ciência do problema.

O governo estadual está arcando com R$ 1 milhão em socorro aos haitianos. Tião Viana disse ao ministro da Justiça que o assunto não é exclusivo do Acre. Ele quer que a fronteira do Acre com a Bolívia seja reconhecida como área de crise humanitária.

Na avaliação do Ministério Público Federal (MPF) no Acre, o governo brasileiro viola tratados internacionais ao barrar e dificultar a permanência de haitianos que pedem refúgio no País.

Os haitianos percorrem estradas ilegais, usam rotas de narcotraficantes, cruzam regiões de mata fechada a pé, correm risco de morte e pagam pela ação de coiotes.

Em junho, o procurador regional dos Direitos do Cidadão Ricardo Gralha Massia enviou recomendação ao Ministério da Justiça para que sejam alterados os procedimentos da Polícia Federal e do Comitê Nacional de Refugiados (Conare) relativos à entrada de haitianos no Brasil e de concessão de autorização para permanência.