Poluição: um problema de saúde pública. Entrevista com Paulo Saldiva

05/09/2012 16:07

Paulo Saldiva: "Poluição é um

problema de saúde pública." 

IHU - Unisinos/Adital

"Quando as mesmas empresas propõem produtos de padrões ambientais distintos em lugares diferentes, penso que é uma forma de tratar mal as pessoas. É isso que chamo de racismo ambiental: é uma forma de oferecer produtos de menor qualidade tomando partido”, assinala o médico.

A resolução dos problemas de mobilidade urbana e de poluição está imbricada em "conflitos econômicos e culturais”, e "numa política de sinais trocados”, diz Paulo Saldiva, médico e pesquisador da Faculdade de Medicina da USP à IHU On-Line. Os conflitos econômicos, esclarece, são de ordem pública, porque se estimula o problema, e dificulta a solução. "Por exemplo, para fazer um corredor de ônibus ou metrô, é preciso fazer um estudo de impacto ambiental, enquanto que no caso de São Paulo, para licenciar dois mil veículos por dia, não precisa fazer estudo nenhum. Então, isso impede que as decisões mais estruturantes sejam feitas”. Já os de ordem cultural, acontecem "porque as pessoas acostumaram a se defender do transporte coletivo ruim usando seus veículos (...) Enquanto nós nos maravilhamos quando vamos para a Europa andar de transporte coletivo, trem, ônibus, bonde, aqui defendemos o uso do nosso transporte individual”.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone, o pesquisador enfatiza que a poluição é verificada como problema de saúde pública desde os anos 1970, mas o tema é desconsiderado porque "quando se discute que tipo de combustível o país irá usar para diminuir a poluição, se o diesel irá mudar ou não, se vamos reduzir o IPI para facilitar a compra de carros, quem decide essas questões é o Ministério do Planejamento, o Ministério da Fazenda, Indústria e Comércio, e os integrantes da área da saúde nem se sentam à mesa para conversar”.

Paulo Saldiva é professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – USP, com pós-doutorado em Anatomia Patológica e Patologia Clínica. Coordena os projetos de Avaliação da Toxicidade da Poluição por Material Particulado Gerado por Diferentes Fontes Emissoras: Proposição de Estudos Clínicos e Experimentais, do Instituto Nacional de Análise Integrada do Risco Ambiental – Inaira.

 

Confira a entrevista.

Desde quando a poluição passou a ser um problema de saúde pública no Brasil, e como o tema tem sido tratado no âmbito da saúde?

Paulo Saldiva – A poluição tem sido verificada como problema de saúde pública desde as primeiras medidas sistemáticas de poluição, que começaram no Brasil através da rede da Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental – Cetesb de São Paulo, no final dos anos 1970. Naquele momento havia evidências de que a poluição seria um problema de saúde, tanto que foram tomadas medidas de controle das emissões em Cubatão, criou-se um programa de controle das emissões de indústria e se começou a montar, a partir dos anos 1980, o Programa de Controle das Emissões Veiculares – Proconve. Em função desses programas, a poluição caiu bastante. Ao mesmo tempo, porém, foram surgindo novas evidências de que mesmo os níveis de poluição considerados adequados já não eram mais. Ou seja, à medida que as técnicas de análises e os estudos epidemiológicos foram se refinando e surgiramnovos dados de poluição, percebemos que variações de poluição, mesmo na faixa que antes se imaginava legal, provocavam mortalidade, internações e uma série de outros desfechos.

A área da saúde, desde Oswaldo Cruz, da revolta da vacina, das grandes endemias, organiza-se muito no sentido de fazer vacinação, de providenciar atendimento. O problema é que ela se sente um pouco incapaz frente às necessidades de resolver o problema de poluição. Hoje o problema da poluição envolve desde emprego, renda, planejamento urbano, política tecnológica, questões de mercado. Enfim, são temas que não estão relacionados apenas com a saúde. De toda forma, a saúde ainda não aprendeu a lidar adequadamente com essa questão. Então, quando se discute que tipo de combustível o país irá usar para diminuir a poluição, s

e o diesel irá mudar ou não, se vamos reduzir o IPI para facilitar a compra de carros, quem decide essas questões é o Ministério do Planejamento, o Ministério da Fazenda, Indústria e Comércio, e os integrantes da área da saúde nem se sentam à mesa para conversar.

O senhor costuma dizer que não há impedimentos técnicos para que o problema da poluição seja resolvido. Quais são hoje as maneiras possíveis de diminuir a poluição atmosférica?

Paulo Saldiva – Ao longo desses anos todos fiquei mais convencido de que, embora todo mundo advogue que mortalidade precoce e internações sejam temas que compadeçam a todos, quando se está formulando políticas públicas o fato predominante vai ser o econômico, por causa da crise do emprego e de outros fatores. Entretanto, para se ter uma ideia, o país gasta algo em torno de 30 bilhões por ano em função dos acidentes, entre atendimento hospitalar e perda de capacidade laboral. Então, ter essa visão da economia de forma mais integral é importante e imperativa para tomada de decisões.

Por que eu digo que o remédio existe? Porque nós sabemos fazer tudo. O Brasil tem tecnologia reconhecida no exterior para construir corredores de ônibus expresso. São os engenheiros brasileiros que fazem isso na China, em Bogotá, no Chile. Desde Curitiba nós aprendemos a fazer isso e sabemos como fazer um corredor de ônibus transportar metade do que um metrô transporta por hora de passageiros. Além disso, o Brasil tem várias matrizes de combustíveis, basta citar a elétrica provida de força hidráulica, a do etanol, biomassa, gás. Além disso, sabemos produzir veículos elétricos, híbridos. Quer dizer, nós podemos fazer tudo o que quisermos, sem precisar inventar nada.O grande problema é que, ao contrário dos grandes temas da saúde pública, como a dengue ou o vírus A (H1N1), onde quem conseguir colocar um remédio e destruir o agente etiológico, ganho um prêmio, no caso do uso de ocupação do solo das cidades, quem vai ocupar as ruas são os carros, os transportes coletivos etc. Há aí conflitos econômicos extremamente grandes e um conflito cultural, porque as pessoas acostumaram a se defender do transporte coletivo ruim usando seus veículos. Existe o que chamo de política de sinais trocados: nós estimulamos o problema e dificultamos a solução. Por exemplo, para fazer um corredor de ônibus ou metrô, é precisa fazer um estudo de impacto ambiental, enquanto que no caso de São Paulo, para licenciar dois mil veículos por dia, não precisa fazer estudo nenhum. Então, isso impede que as decisões mais estruturantes sejam feitas. Enquanto nós nos maravilhamos quando vamos para a Europa andar de transporte coletivo, trem, ônibus, bonde, aqui defendemos o uso do nosso transporte individual.

Então, essa é uma questão até educacional. Temos de perceber que estamos deteriorando as nossas cidades, estamos perdendo o nosso tempo, estamos perdendo um pouco da nossa saúde e não estamos ganhando nem em mobilidade. Hoje cada brasileiro gasta cada vez mais tempo para ir e vir para o mesmo lugar ao qual ele se deslocava outrora.

 

Que investimentos em mobilidade urbana devem ser considerados para diminuir a poluição nas grandes cidades? A partir da infraestrutura urbana existente, como melhorar a mobilidade?

Paulo Saldiva – Basta que se ocupem as ruas com corredores de veículos leves, sobre trilho, de corredores de ônibus inteligentes, onde não há necessidade de ter, por exemplo, um bilheteiro dentro. O problema é que tem de fazer da qualidade do transporte coletivo, da eficiência e do valor econômico um atrativo para as pessoas migrarem. Então, talvez ao implantar um sistema desses haja um conflito inicial, enquanto se monta a estrutura, mas depois o transporte melhora.

Berlim é a cidade que tem o melhor sistema de mobilidade urbana que eu já vi. O número de veículos por habitantes é muito maior do que o brasileiro, mas as pessoas só usam os carros quando realmente precisam, porque o transporte coletivo é tão melhor e as ciclovias são tão mais eficientes, que as pessoas preferem utilizar o transporte público.

 

Que políticas públicas existem no país para tentar reverter a poluição e os danos causados por ela?

Paulo Saldiva – Existem algumas, mas elas são menores do que o problema que cresce. Tem o programa de controle de carros, de diminuição de carros; tem também o programa de inspeção e manutenção de carros. Mas essas e outras são sempre medidas que não são muito significativas.

Nunca houve uma medida de cobrar pelo uso do centro da cidade, como um pedágio urbano, por exemplo. Ninguém tem coragem de propor isso, embora todos nós pagamos um pedágio urbano embutido. Na Av. Paulista, por exemplo, se você quiser estacionar um carro, vai pagar trinta reais a primeira hora, e depois vinte reais por hora subsequente. É muito dinheiro, mas nós preferimos entregar esse valor na mão dos proprietários do estacionamento, porque não confiamos nas lideranças políticas.

Nós acordamos mais cedo, temos privação do sono, do nosso lazer, da nossa capacidade de interagir com as pessoas das quais gostamos por causa do trânsito. No momento em que as pessoas se conscientizarem de que isso não é normal, de que isso não é esperado, de que não é normal morrerem quatro pessoas em acidente de tráfego por dia em São Paulo, mais doze de poluição, poderemos ter uma cidade mais legal. Nós poderíamos recuperar um pouco desse cimento todo com verde; poderíamos dar espaço para as pessoas caminharem, andarem de bicicleta e promover saúde. Chamam-me de romântico quando falo essas coisas, mas, se formos analisar na ponta do lápis, veremos que o que estamos fazendo com as nossas cidades é uma loucura.

 

Sobre a mobilidade das cidades brasileiras, quais são os limites da acessibilidade da periferia para o centro das cidades? Como que as ilhas de vulnerabilidade ambiental se relacionam com as ilhas de pobreza?

Paulo Saldiva – Tem uma relação muito grande, porque as cidades brasileiras passaram por um processo de pseudourbanização devido ao crescimento caótico. Então, os centros das grandes cidades estão ficando menos povoados, porque são considerados espaço de empreendimentos comerciais. Como o preço do solo cresce, as pessoas vão migrando e acabam morando cada vez mais longe. Elas estão indo para regiões onde não têm serviços, onde a cobertura vegetal é muito menor. Além disso, elas ficam mais tempo no tráfego e, portanto, têm menos tempo para descansar, dormir, se exercitar. Em São Paulo, por exemplo, o tempo médio de deslocamento no trânsito, para ir e voltar do trabalho, é algo em torno de 2h 40min. Quase três horas do dia. Então, 1/3 do nosso dia gastamos para estar no trânsito.

Então, essas pessoas que menos podem, que trabalham mais, que "matam um leão por dia”, moraram mais longe. Uma pessoa de Santo Amaro-SP, por exemplo, perde 2h30min para ir e 2h30min para voltar do trabalho. Em 5 horas um indivíduo faria uma faculdade. Então, essas pessoas são, digamos, dentro de um ecossistema urbano, a base da cadeia alimentar, e à custa da saúde delas é que construímos uma cidade. Isso é muito desigual, é uma forma bastante injusta de considerar a cidade.

 

Pode nos explicar o conceito de racismo ambiental e qual a influência econômica nesse processo?

Paulo Saldiva – Tem um relatório da OSD que mostra quais serão as principais causas de morte em 2050, em função das causas ambientais. Segundo o relatório, a malária e a diarreia irão diminuir, mas em contrapartida a poluição do ar por material particulado irá aumentar muito, e isso vai acontecer na África, na América Latina, na Ásia e no Oriente Médio. Ou seja, isso vai transformar a poluição do ar no maior problema de saúde decorrente de alterações ambientais nos próximos quarenta anos. Irão morrer nove milhões de pessoas de poluição em 2050 por ano. Ultrapassando toda a soma de diarreia e malária.

Acontece que nem o plasmódio da malária, nem os embriões coléricos, tampouco os agentes das diarreias têm lobby econômico. Enquanto isso os processos menos avançados tecnologicamente estão migrando para regiões que têm menos capacidade de produzir conhecimentos e detectar os efeitos.

Quando as mesmas empresas propõem produtos de padrões ambientais distintos em lugares diferentes, penso que é uma forma de tratar mal as pessoas. É isso que chamo de racismo ambiental: é uma forma de oferecer produtos de menor qualidade tomando partido. Quer dizer, se produzir com o menor preço possível, em lugares onde as pessoas não têm como 

 

O senhor relaciona o racismo ambiental com a atuação das empresas multinacionais, que praticam padrões ambientais distintos dependendo do país em que atuam. Qual é o padrão utilizado no Brasil? Que modelo de tecnologia é utilizado no transporte público brasileiro? Por que em alguns países há maior valorização em questões ambientais, sociais?

Paulo Saldiva – É um modelo intermediário. Mas se você quiser saber quanto o seu carro emite de poluição na França, você consegue, mas não consegue saber aqui no Brasil. Quer dizer, as mesmas empresas que atuam no Brasil e na Europa disponibilizam as informações lá, e não aqui. É o mesmo que aconteceu há um tempo com a bula de remédios.

 

Como a questão da poluição é tratada em outros países? Há uma preocupação em diminuir a poluição e resolver os problemas de mobilidade?

Paulo Saldiva – Muito! Por isso que eles estão conseguindo resolver o problema da poluição deles e nós não. Alguém lá fez a conta, o lucro de diminuir a poluição é muito grande. É possível ganhar dinheiro diminuindo a poluição. Tanto que se observarmos o mapa da poluição, veremos que é o mapa da pobreza: quanto mais pobre a cidade, maior será a poluição. O controle da poluição não inviabiliza o desenvolvimento econômico. É o contrário.

Ainda não atingimos o nível de maturidade de fazer essas políticas integradas. É como se cada secretaria e cada ministério tivesse a sua política individual, e não tivesse uma conversa para saber o custo e o benefício destas políticas. Este é o papel da universidade, de fazer uma análise crítica e de vez em quando parar para pensar se de fato o que estamos fazendo é o mais inteligente e o mais adequado para todos.

 

A poluição ainda está muito atrelada a essa ideia de desenvolvimento?

Paulo Saldiva – Está! Aliás, nós destruímos o nosso transporte ferroviário para desenvolver a indústria de caminhões pesados no Brasil, e agora estamos tentando recompor. O Brasil optou por esse modelo de desenvolvimento que vem desde o governo Juscelino Kubitschek, onde a indústria automobilística estaria alavancando o desenvolvimento do país. A mesma coisa se repete hoje com a indústria de energia, com o pré-sal. Dizem que os recursos do pré-sal serão a salvação da educação brasileira. É lógico que ele vai contribuir, mas tem um lado negativo, e esse lado não é apresentado com a mesma clareza. Esse balanço entre custos e benefícios tem de ser feito por toda a sociedade e não só pelo segmento que está dentro daquela esfera de negócios da própria Caixa.

 

Quais os principais desafios de relacionar políticas de saúde, meio ambiente e mobilidade?

Paulo Saldiva – É incluir saúde humana na pauta da discussão. A saúde deveria tomar a si o projeto de discutir, porque hoje, no caso de São Paulo, quatro mil pessoas a mais morrem por ano, e isso é um tema de saúde pública. Do contrário, alguns segmentos analisam os ganhos e outros pagam os custos. A saúde já não está com aquela bola toda e ainda se gasta o dinheiro público para subsidiar o Ministério da Indústria e Comércio, ou uma política de desenvolvimento. Vamos fazer a conta e ver o que vale a pena. Essa discussão é interessante, e o Brasil tem uma grande oportunidade para resolver esse problema.